quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Em Marcha!

EM MARCHA!
____________
Aos estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo, 9 de Outubro de 1915.
“Ser-me-ia fácil, para agradecer a vossa carinhosa recepção, improvisar algumas frases de brilho fugaz, que morressem aqui ao nascer, música sem idéias, fútil e amável cortesia sem fundo e sem eco. Mas quis dar alguma vida, mais calor e duração as minhas palavras, e escrevi-as, para que elas, confiadas agora aos vossos ouvidos e às vossas almas, possam estender-se a ouvidos distantes e a almas afastadas, a todos os Brasileiros de vossa idade, crescendo, estudando, sonhando, dentro do imenso e inquieto coração do Brasil.

O momento não quer discursos ocos e retumbantes, sonoridades entontecedoras, rolando na esterilidade do vácuo. O que se exige agora é a simplicidade de idéias fortes em palavras claras, que, na sua dura tristeza, tenham, com a revolta, um estímulo para a esperança, para a crença e para o heroísmo. Não podeis, talvez, perceber com perfeita consciência a gravidade da nossa situação moral. Viveis numa rica metrópole, entre o sorriso e a gala da vida culta; e não podeis entrever o caos, a confusão e os perigos que enchem toda a nossa maravilhosa e inconsistente Pátria. Na juventude, tudo é graça e facilidade, espontaneidade e embevecimento: uma pureza natural, que do íntimo se transborda para o exterior em véus ilusórios, um fascínio próprio, que se espalha sobre o ambiente e embeleza o espetáculo da vida real... Mas é força que, antes do tempo devido, alguém cruelmente vos arranque da paz e do arroubo. Vede que na Europa, hoje, quando a guerra abre diariamente largos claros nas fileiras dos combatentes, os governos chama às armas as mais novas classes dos exércitos, as falanges dos adolescentes, reservas fulgentes da primavera nacional: aqui, outra desgraça, mais triste, oprime o país, e outra morte, pior, escasseia os filhos válidos, — desgraça de caráter e morte moral; e já que os varões, incapazes ou indiferentes, deixam o Brasil devastado sem guerra e caduco antes da velhice, — venham ao campo os efebos, em que o ardor sagrado contrabalance a experiência, e em que o ímpeto da fé supra a imaturidade dos anos!

Não vos deixeis deslumbrados do magnífico progresso desta cidade e deste Estado: São Paulo não é todo o Brasil; e a verdadeira grandeza de um país não é a sua riqueza. Por outro lado, não imagineis que o que me assusta seja o desconforto, a falta de dinheiro, a falta de trabalho organizado e produtivo na maior parte da união, nem o ônus formidável das dívidas oprimindo o nosso futuro. Ainda há muita ventura e dignidade nas casas em que não há muito pão; mas nada há, quando não há amor e orgulho.

O que me amedronta é a míngua de ideal que nos abate. Sem ideal, não há nobreza de alma; sem nobreza de alma, não há desinteresse; sem desinteresse, não há coesão; sem coesão, não há pátria.

Uma onda desmoralizadora de desânimo avassala todas as almas. Não há em cada alma a centelha criadora, que é a consciência da força e da bondade; e de alma para alma não há uma corrente de solidariedade, de crença comum e de entusiasmo, que congregue todo o povo em uma mesma aspiração. Hoje, a indiferença é a lei moral; o interesse próprio é o único incentivo. O «arrivismo», — hediondo estrangeirismo com que se exprime uma enfermidade ainda mais hedionda, — epidemia moral, que tende a transformar-se e a enraizar-se como endemia, envenena todo o organismo social e mata todos os germens da dedicação e da fé: cada um quer gozar e viver sozinho, e crescer, prosperar, brilhar, enriquecer depressa, seja como for, através de todas as traições, por cima de todos os escrúpulos. Assim, a comunhão desfaz-se, e transforma-se em acampamento bárbaro e mercenário, governado pelo conflito das cobiças individuais. E os políticos profissionais, pastores egoístas do rebanho tresmalhado, nada fazem para impedir a dispersão; e, quando não se aproveitam do regabofe generalizado, e quando não se locupletam, imitando a gula comum, apenas se contentam com a passiva e ridícula vaidade do mando fictício...

Esse é o espetáculo que nos deparam as classes cultas. As outras, as mais humildes camadas populares, mantidas na mais bruta ignorância, mostram só inércia, apatia, superstição, absoluta privação de consciência. Nos rudes sertões, os homens não são brasileiros, nem ao menos são verdadeiros homens: são viventes sem alma criadora e livre, como as feras, como os insetos, como as árvores. A maior extensão do território está povoada de analfabetos; a instrução primária, entregue ao poder dos governos locais, é, muitas vezes, apenas, uma das rodas da engrenagem eleitoral de campanário, um dos instrumentos da maroteira política. Quanto à instrução profissional, essa, na maior parte dos Estados da União, é um mito, uma fábula, uma ficção. Lembrai-vos que, se a escravidão foi um crime hediondo, não foi menos estúpido o crime praticado pela imprevidência e pela incapacidade dos legisladores, dando aos escravizados apenas a liberdade, sem lhes dar o ensino, o carinho, o amparo, a organização do trabalho, a habilitação material e moral para o exercício da dignidade cívica...

Que se tem feito, que se está fazendo, para a definitiva constituição da nossa nacionalidade? Nada.

Os imigrantes europeus mantém aqui a sua língua e os seus costumes. Outros idiomas e outras tradições deitam raízes, fixam-se na terra, viçam, prosperam. E a nossa língua fenece, o nosso passado apaga-se...

Há sete anos, houve um rebate ansioso e febril. Na tribuna e na imprensa, vibrou alto chamamento, um toque de alarma a todas as energias adormecidas. E uma lei apontou à nossa esperança o entreluzir de uma promessa de salvação: a lei do sorteio militar, se não a providência completa do serviço militar obrigatório, ao menos um ensaio salutar, o primeiro passo para a convalescença e para a cura. Então, como ainda hoje, eu considerava que era esse o único providencial remédio para o nosso definhamento. Nunca fui, não sou, nem serei um militarista. E não tenho medo do militarismo político. O melhor meio para combater a possível supremacia da casta militar é justamente a militarização de todos os civis: a estratocracia é impossível, quando todos os cidadãos são soldados. Que é o serviço militar generalizado? É o triunfo completo da democracia; o nivelamento das classes; a escola da ordem, da disciplina, da coesão; o laboratório da dignidade própria e do patriotismo. É a instrução primária obrigatória; é a educação cívica obrigatória; é o asseio obrigatório, a higiene obrigatória, a regeneração muscular e psíquica obrigatória. As cidades estão cheias de ociosos descalços, maltrapilhos, inimigos da carta de «abc» e do banho, — animais brutos, que de homens tem apenas a aparência e a maldade. Para esses rebotalhos da sociedade a caserna seria a salvação. A caserna é um filtro admirável, em que os homens se depuram e apuram: dela sairiam conscientes, dignos, brasileiros, esses infelizes sem consciência, sem dignidade, sem pátria, que constituem a massa amorfa e triste da nossa multidão... Mas nada se fez. O mesmo homem, o mesmo marechal, que, quando ministro da guerra, promoveu esse movimento salutar em favor da nacionalidade, — no dia em que subiu ao supremo poder foi o primeiro a esquecer a sua criação, deixando-a morta no berço. E hoje, depois de um quatriênio de lutas estéreis e de politicagem sem moral, — o problema terrível permanece sem solução: uma terra opulenta em que muita gente morre de fome, um país sem nacionalidade, uma pátria em que se não conhece o patriotismo.

Moços de São Paulo, estudantes de Direito, sede também os estudantes e os pioneiros do ideal brasileiro! Uni-vos a todos os moços e estudantes de todo o Brasil: num exército admirável, sereis os escoteiros da nossa fé!

O Brasil não padece apenas da falta de dinheiro: padece e sofre da falta de crença e de esperança. O agonizante não quer morrer: quer viver, salvar-se, reverdecer, reflorescer, rebentar em nova e fecunda frutificação. Dai-lhe os vossos braços, dai-lhe as vossas almas, dai-lhe a vossa generosidade e o vosso sacrifício! Não espereis o dia em que, deixando esta casa, iniciardes a vossa efetiva existência cívica, para o trabalho público, para a agitação social, para a política. Trabalhai, vibrai, protestai, desde já! Protestai, com o desinteresse, com a convicção, com a renúncia, com a poesia, —contra a mesquinharia, contra o egoísmo, contra o «arrivismo», contra a baixeza da indiferença!

Desta velha casa, de entre estes sagrados muros, que esplendem de tradições venerandas, deste quase secular viveiro de tribunos e de poetas, —daqui saíram, em rajadas de heroísmo, em ímpetos de entusiasmo, as duas campanhas gloriosas, que foram coroadas pela vitória da Abolição e da República. Estruja de novo a casa! Estremeçam de novo os muros! e de novo palpite e ressoe o aviário canoro, cheio de hinos de combate e de gorjeios de bondade! Inaugurai, moços de São Paulo, a nova campanha!

Perto de vós, entre vós, o começo da minha velhice, tocado da graça milagrosa da vossa mocidade, tem gomos verdes, feiticeiros rebentos de ressurreição.

Escuta e acolhe a revolta e a esperança do meu outono, ó primavera da minha terra! Em marcha vitoriosa, ó meus irmãos, para o Ideal!”

— Olavo Bilac



[OLAVO BILAC. In (OLAVO BILAC. A Defesa Nacional, Discursos. Ed. Liga da Defesa Nacional, Rio de Janeiro, 1917; Pág 3-9)]


Digitalizado por: Lucas Gustavo Boaventura Martins.

Olavo Bilac



Por Cristo e Pela Nação: Anauê!

Nenhum comentário:

Postar um comentário